Coluna literária do domingo

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Entre a lâmina e o espelho.

Uma lâmina de vidro, ladeava as escadarias de uma arquitetura barroca, onde se lia em alto relevo na fachada: “Aqui é a casa do povo.” Que ironia! Na verdade ali era apenas um depósito de cabides onde se penduravam paletós, discursos e gravatas. Em seu entorno, carros longos, pretos, blindados e bem polidos, exaltavam a imponência de uma edificação de paredes largas, erigida lá pelo final do século XVIII. Estava eu divagando, escrevendo alguma coisa que, não lembro o que, quando me deparei com um rosto magro, esquálido, e quase sem vida, se debatendo e dizendo verdades na cara do segurança que, por ordens superiores não o deixava entrar. Era um trabalhador que estava ali com a coragem no peito, desengasgando as mágoas, tentando ser recebido por alguém que pudesse curar alguma ferida que, poderia está sangrando nas valetas da alma de seu povo. Fiquei ali, observando aquele ser impaciente que ia lá, vinha cá, falava alguma coisa para o guarda, sentava-se no meio-fio, olhava para o nada, e nada, nem ninguém lhe enxergava. Aquela cena hostil vivida por aquela criatura, me transportou para um passado não muito distante. Tive a impressão de já ter passado por aquela situação. À medida que o tempo passava, eu incorporava aquele cidadão e me demorava naquele instante que me fazia ver de perto a distância entre o povo e o poder. A indignação tomava conta de mim, e uma raiva infinda me cortava a carne, como se a ponta de uma faca afiada, com seu fino fio, me varasse o peito. Fiquei ali compartilhando as dores daquele homem, que nada mais era que um pai de família, honesto e trabalhador, que perdeu as esperanças e estava ali para saber se valia a pena continuar defendendo alguma causa nessa vida. Ah, meus camaradas, mera ilusão, pura utopia, quem pode, pode, quem não pode faz das tripas coração e vai levando a vida do jeito que a vida quer.

Enfim… O dia escureceu, fecharam-se as portas, o guarda sumiu, o espelho se partiu e aquela lâmina de vidro estilhaçou a imagem do retirante que, vencido pelo cansaço, sentou-se no batente do desengano, baixou cabeça e dormiu.

 Maciel Melo.