“Sinto minha voz mais suave, tranquila”, relata a auxiliar administrativa Davina Morais, 33, já completamente adaptada à nova voz, agora mais aguda. Ela é a primeira mulher trans a realizar uma cirurgia de feminização da voz em um hospital público do Ceará. A iniciativa foi realizada no Hospital Estadual Leonardo Da Vinci (Helv), unidade da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), em Fortaleza. O procedimento passa a fazer parte do catálogo de cirurgias do hospital.
Conhecida como “glotoplastia de Wendler”, a cirurgia permite que mulheres trans tenham uma voz mais feminina, condizente com a identidade de gênero com que se identificam. A coordenadora médica do Serviço de Otorrinolaringologia do Helv, Débora Lima, explica que o processo cirúrgico é feito sem a necessidade de cortes externos. “Com o auxílio de instrumentos especiais, como o microscópio, o comprimento da prega vocal é reduzido. São dados dois pontos para haver maior tensão e diminuição do comprimento e da massa dessa corda vocal”, afirma a médica.
O procedimento é auxiliado por sessões de fonoterapia, realizadas antes e após a cirurgia. A coordenadora do Serviço de Fonoaudiologia do Helv, Wigna Raissa Matias, explica que, durante as sessões pré e pós-cirúrgicas, foram aplicados dois protocolos internacionais: o de Qualidade Vida em Voz (QVV), que ajuda a compreender como o problema de voz pode interferir nas atividades da vida diária; e o Questionário Autoavaliação Vocal para Transexuais (TWVQ, em inglês), que quantifica a autopercepção de uma mulher trans sobre sua voz, avaliando resultados de qualidade de vida de mulheres trans que buscam cuidados vocais de afirmação de gênero.
Para o acompanhamento e as comparações da voz, utilizou-se um software específico para Avaliação Acústica do Sinal Vocal. “A paciente está apresentando uma qualidade vocal feminina, alcançando uma frequência de até 200 Hz. Antes da cirurgia, ela não conseguia atingir esse alcance, permanecendo em uma faixa de frequência de 120 a 140 Hz, que estava no padrão de dúvida em relação à identidade de gênero”, afirma Wigna Raíssa.
A coordenadora de fonoaudiologia explica ainda que a adesão da paciente à terapia foi fundamental para o sucesso da transição vocal. “Davina foi presente nas sessões, seguiu as orientações em casa e sempre foi muito ativa. Nossas sessões duravam de 40 a 50 minutos, e ela aproveitava para tirar todas as dúvidas. Por ser algo novo, Davina tinha muitas questões, inclusive relacionadas ao impacto social, que foram sendo resolvidas ao longo do tratamento”, relata.
Davina Morais relata que, antes da cirurgia, costumava chegar ao final do dia com uma rouquidão e um desgaste na voz. O incômodo era fruto de um esforço feito no modo de falar para que a voz não saísse tão grave. “Mesmo ajustando a minha voz de forma automática, eu ainda sentia que havia um timbre grave que me incomodava. Isso me levava a evitar situações em que eu precisava falar em público, por exemplo. No meu caso, minha voz me causava disforia [quando uma pessoa não se sente confortável com as características masculinas ou femininas de seu corpo] porque ela não correspondia à imagem que eu via de mim mesma”, relata.
Além do desconforto com a imagem, a violência era outro risco para Davina. “Fugir do timbre grave me dá um conforto maior para transitar pelo mundo sem ser atingida por certas violências. Já fui vítima de diferentes tipos de violência, inclusive física, e essa cirurgia é uma forma de evitar algumas dessas situações”, pontua.
A médica Débora Lima explica que a voz é parte da nossa personalidade, identificando-nos como indivíduos. “A cirurgia não vem só como um fator estético, mas também como um fator de inclusão. Muitas pacientes relatam que passam, às vezes, por constrangimentos, porque elas já passaram por todo aquele processo de reafirmação de gênero. Estão bem na parte psicológica, mas a voz acaba identificando a paciente e trazendo alguns prejuízos”, pondera a coordenadora médica do serviço de otorrinolaringologia do Helv. (Foto: Governo do Ceará).